Séculos de História
Registos da ocupação humana ao longo dos tempos no concelho de Manteigas.
Atividades económicas
“Os primeiros teares criaram-se, em já difusos e incontáveis dias, para a lã que produziam os rebanhos dos Hermínios”.
in A lã e a neve, Ferreira de Castro.
Economicamente, a pastorícia e a indústria dos lanifícios constituíram importantes atividades da vila de Manteigas.
A pastorícia permitiu o aproveitamento de terrenos que se encontravam abandonados ou que não eram úteis. A fraca qualidade dos solos, muitas vezes pedregosos, e as condições climatéricas prevalecentes nas áreas de maior altitude sempre se traduziram numa reduzida capacidade produtiva agrícola. Acontece que, sem a contribuição pecuária na fertilização das terras dos maninhos, a cultura do centeio, única possível entre os mil e os mil e setecentos metros de altitude, não teria sido viável.
No campo da indústria, o setor dos lanifícios conheceu uma grande importância na vila de Manteigas. No ano de 1524, sabe-se que o monarca D. João III fez mercê no concelho da “vedoria dos panos” aí produzidos. Em meados da centúria de quinhentos, já existiam em Manteigas três pisões, o que significa que nesta altura se realizava, localmente, todo um conjunto de operações inerentes à produção de lã e ao acabamento dos tecidos. Em Manteigas, como em muitos outros centros produtores de lanifícios, a existência de matérias-primas, as disponibilidades energéticas e os baixos custos da maior parte do equipamento industrial tornavam possível a montagem de pequenas unidades de produção, por artificies e artesãos habilitados.
A política industrial adotada pelo Conde da Ericeira no século XVII tinha como principal objetivo a montagem de manufaturas em zonas tradicionalmente produtoras e, em relação aos lanifícios, procurou centralizar a produção preferencialmente na Serra da Estrela, “onde tudo são lãs e panos”. A instalação da unidade manufatureira na vila de Manteigas viria a transforma-la num centro industrial com grandes potencialidades, tendo ganho uma posição de algum destaque na atividade têxtil.
Nascimento e povoamento
Após a reconquista dos territórios aos Muçulmanos, os reis e alguns poderosos senhores da nobreza e do clero fundaram concelhos e Manteigas não foi exceção. Desde finais do século XI que se assistiu por todo o país ao povoamento de recônditos lugares. Exemplo marcante foi o distrito da Guarda, um dos preferidos dos nossos primeiros reis.
A atribuição de uma carta de foral constituía, pois, uma medida que visava incentivar o povoamento de terras de difícil acesso e desenvolver culturas pouco rentáveis. Tendo como principal inimigo o muçulmano e com o perigo eminente de incursões oriundas de Badajoz e Cárceres, D. Sancho I procede a uma profunda reorganização do território de forma a consolidar o que tinha sido conquistado, uma preocupação em povoar zonas fronteiriças de forma a consolidar a defesa. Além disso era extremamente importante adequar leis às populações que regessem as suas atividades, os seus costumes e que focassem questões relacionadas com a sua proteção e fiscalidade.
É neste espírito que D. Sancho I concede forais a Gouveia (fevereiro de 1186), Covilhã (setembro de 1186), Folgosinho (outubro de 1187), Centocellas, atual concelho de Belmonte (1199) e Guarda (novembro de 1199).
Historicamente, Manteigas terá nascido oficialmente entre 1186 e 1188. Ainda que o seu certificado de nascimento – carta de foral concedida por D. Sancho I – se tenha perdido no tempo, não existe qualquer dúvida quanto à promulgação de tal diploma, pois o Foral de 1514, aquele que é o foral que o município guarda, faz referência expressa à existência de um foral outorgado por D. Sancho I:
«Achamos per foral del rey dom Sancho primeyro que os tributos foros e direitos reais na dita villa se deuem e ham de arrecadar e pagar daquy em diante na maneyra e forma seguinte…»
Da análise sumária feita à cronologia dos forais da região, presume-se que Manteigas tenha tido o seu primeiro Foral entre 1186 e 1188, isto porque tendo Seia recebido carta de foral em 1136, Gouveia e Covilhã em 1186 e Folgosinho em 1187, não existe em nenhum desses documentos qualquer referência a Manteigas relativamente aos limites desses concelhos, o que nos leva a pensar que a Carta de Foral a Manteigas seja posterior a 1187, podendo aceitar-se o ano de 1188 como sendo o da criação do foral e do concelho.
Apesar de não existirem registos referentes à ocupação de Manteigas antes do século XII, há indícios que levam a acreditar numa provável existência, já no tempo dos romanos, de uma povoação com alguma importância na área onde hoje se localiza Manteigas., afirmação que merecerá naturalmente algumas reservas. Analisada a toponímia, poderá associar-se o local Campo Romão a um lugar fortificado ocupado pelo homem no tempo dos romanos.
Um outro lugar próximo de S. Gabriel designado de Vargem do Castro estará associado a uma ocupação mais antiga do que a romana, pois a designação crasto > castro, indicativo de recinto fortificado, poderá ter correspondência com ruínas ou vestígios arqueológicos de um tipo de povoado, da Idade do Cobre e da Idade do Ferro, anterior à chegada dos Romanos a esta região.
Um outro vestígio terá sido a existência de uma lápide na antiga Igreja de Santa Maria que comemoraria a passagem de Júlio César por esta região, à frente das suas tropas, datada de 50 a. C. O seu desaparecimento estará ligado à reconstrução da frontaria da dita igreja no ano de 1876, onde a placa se encontraria incrustada ou à sua inserção nos alicerces da igreja de Santa Maria aquando a sua reconstrução em 1935.
Também terá sido encontrada, na primeira ou segunda década do séc. XX, no Ribeiro dos Bacelos, perto do Tinte, em Manteigas, uma moeda romana, um «denarius» de prata, ainda do tempo da República Romana, talvez de cerca de 112 a.C., mandado cunhar por Manius Aemilius Lepidus (informação mencionada num artigo do jornal local Ecos de Manteigas, n.º 341, de 12-01-1969).
Quanto à passagem de povos germânicos (suevos e visigodos) não há qualquer referência. Mas dos povos muçulmanos fala-se num emirato que servirá de suporte à Lenda de Alfátema, a lenda de uma princesa moura encantada, associada à reconquista pelos cristãos dos territórios ocupados pelos mouros a partir de 710.
Naturalmente que se tratam de dados insuficientes que merecem algumas reservas, mas que deverão ser tidos em consideração. Na verdade, até ao ano de 1220 não existe qualquer documento que mencione a vila de Manteigas, sendo que esta data diz respeito a Sameiro, que só em 1835 foi adstrito ao concelho de Manteigas na sequência da reorganização administrativa de D. Maria II. O termo Sameiro surge numa carta de foral concedida nesse ano por D. Guilherme Raimundes, que pretendia povoar uma herdade que possuía in riba mondego, et est in termi no felgosino. Transcreve-se aqui uma das disposições:
«Vizino de vila noua per totum regnum Portugal non pectet calumnia nisi per foro de Zameiro»
Referências antigas sobre Manteigas surgem nas Inquirições de D. Afonso III, em 1258, sobre os impostos em géneros que eram pagos pelos habitantes de Manteigas. Com o objetivo de saber o que pertencia à Coroa e o que abusivamente andava na posse dos particulares, o monarca procedeu a inquirições por todo o país. Relativamente a Manteigas, os inquiridores registaram os seguintes impostos: vinho, cevada, uma vaca, porcos, carneiros, cabritos, ovos, manteiga, mel, sal, farinha, vinagre, lenha, alhos e cebolas, de onde se deduz que seriam estes os produtos que se cultivavam e os animais que se criavam.
Transcreve-se essa parte do documento:
“De Manteigas 300 paes e de vinho cinquo puçaaes e som pella nossa medida III pucaaes e huũ’ almude e meo e de cevada dez carteiros e som pella nossa medida V moios e cinquo algueires e hũ’a vaca e três porcos VII carneiros com o do alfeire e quatro cabritos e duzentos ovos e huũ’ alqueire de mel e huũ’ alqueire de sal e huũ alqueire de farinha e huũ almude de vinagre e duas carregas de lenha e duas restes de alhos e duas de cebolas e por acafram (sic) e por pimenta huũ’ maravedil.”
No século XVI os cinquo puçaaes de vinho equivaliam a vinte e cinco almudes, isto é, seiscentos e vinte e cinco litros, numa zona sem as mínimas condições para o cultivo da vinha, como ainda hoje acontece. Todavia, estas disposições vieram a desaparecer tendo sido substituídos estes géneros por um único imposto em dinheiro no tempo de D. Dinis.
Sublinha-se o pormenor dos pães, farinha e ovos. Tal como a cevada, os pães e farinha pressupunham a produção de cereais. Se tivermos em conta que haveria poucos concelhos que fossem obrigados a pagar uma quantidade tão grande de pães e de ovos, isto será sinónimo de uma riqueza e de uma enorme produção, talvez das maiores do Reino, segundo a opinião de João L. Inês Vaz. Difícil será explicar esta situação se tivermos em conta o contexto geográfico do concelho e as fracas acessibilidades. Talvez a explicação possa estar relacionada com a densidade populacional resultante da atribuição do primeiro foral a Manteigas, aspeto revelador do objetivo atingido pelo ‘monarca povoador’.
No Arquivo Municipal de Manteigas o documento mais antigo remonta a 1302 e refere-se a um compromisso de dívida dos vizinhos de Manteigas feito pelos representantes dos mesmos. 4 de dezembro de 1524 é a data do último pergaminho, que corresponde a um Alvará de D. João III dado à vila de Manteigas fazendo-lhe mercê para sempre da ‘Vedoria dos Panos’.
Além desses testemunhos, existe uma série documental sob o título ‘recibos do pagamento do imposto da colheita’, também designado por «jantar» e «parada», imposto inicialmente constituído por géneros mas que com o passar do tempo foi substituído por uma contribuição em numerário, como já sucedia na época no caso de Manteigas.
No Foral Novo de Manteigas há referência aos impostos que os moradores tinham de pagar em cada ano. Entre outros, os moradores pagavam por ano:
«Cinquo mil e quatrocentos reais de colheyta que se montam nas cento e cinquoenta livras em que ho dito gentar foy apreçado quando per El Rey dom denjs foram mudados nas ditas cento e cinquoenta livras os sesenta maraujdus douro por que na primeyra pouoaçam a dita colheyta foy posta pera a qual paga poderam lançar finta…»
Na frase ‘por que na primeyra pouoaçam a dita colheyta foy posta’, deve-se interpretar como a primeira vez que Manteigas foi povoada ou desde o princípio do seu povoamento, promovido por D. Sancho I – afirmação reveladora da certeza que o monarca tinha relativamente ao passado histórico da vila, o que pressupõe também que existiriam documentos no tombo real que teriam referências sobre Manteigas.
Também num despacho de 1520 dado por D. Manuel I, sobre uma petição dos habitantes de Manteigas, surgem indicações da fundação da vila:
«que os Reys destes Regnos antepassados vendo como a dita villa era despovorada por ser terra muito esterilli de muito trabalho e ser lloguar metido no meio da serra da estrella honde as gentes areceavam acentar vivenda, concederão aos moradores da dita villa muitos privillégios…»
Ora, a expressão ‘a dita villa era despovorada’ não se refere apenas a uma povoação cuja população tivesse desaparecido e fosse repovoada, mas sim à fundação de um povoado, de uma vila, sede de um concelho e à organização do território do ponto de vista económico, fiscal, jurídico, entre outros.
Esta sentença de desagravo de 1520 é o documento demonstrativo da luta pela preservação dos direitos dos habitantes de Manteigas. Trata-se de um despacho de D.Manuel I que vem confirmar o único privilégio dos moradores de Manteigas de que se tem a certeza de vir exarado no foral antigo de D. Sancho I.
O privilégio de que se está a falar diz respeito à fruição dos maninhos. Os moradores poderiam usar os maninhos do concelho sem pagarem qualquer imposto, pois a este respeito diz-se no foral manuelino:
«nom se leuam manos aos moradores da dita villa das terras somente que laurarem dentro do seu limite porque quanto lhe foy dado pollos senhorios passados confirmado per nossa carta. E asy por este nosso foral para sempre.»
Esta regalia que remontaria ao tempo de D. Sancho I seria uma forma de atrair povoadores para as regiões despovoadas, como seria a da Serra da Estrela, com condições climáticas adversas quer ao Homem quer à prática da agricultura.
Fruto da reforma administrativa ocorrida em 1896, o concelho foi extinto em 26 de junho desse ano e anexado ao da Guarda durante cerca de ano e meio, vindo a ser restaurado em 13 de janeiro de 1898. Para tal restauração, em tão curto espaço de tempo, muito terá contribuído o papel preponderante de Joaquim Pereira de Mattos, ilustre industrial manteiguense, que propôs adquirir e transferir para Manteigas uma importante unidade industrial de lanifícios radicada em Portalegre. Mas fortes influências ter-se-ão movido no sentido dessa transferência não se concretizar e Joaquim de Mattos impôs como condição para desistir da ideia, que o concelho de Manteigas voltasse a ser restaurado, o que veio a verificar-se a 13 de janeiro de 1898.
Origem do topónimo
Sobre o passado da vila de Manteigas muito há a dizer, embora alguns pormenores, fruto de conjeturas, mereçam algumas reservas. Ainda assim, existem aspetos interessantíssimos sobre os quais nos propomos refletir.
A primeira observação incide precisamente sobre a origem do nome da vila de Manteigas, onde as opiniões se apresentam bastante divergentes. Uma das versões associa o vocábulo ao plural de manteiga, derivado do latim nattalica-nato, uma vez que em tempos remotos este local seria abundante em gado ovino fazendo-se aqui boas manteigas «era antigamente lugar muito abundante de vacas, onde se faziam boas manteigas, de que tomou o nome» (Chorografia Portugueza e Descripçam Topográfica do Famoso Reyno de Portugal, Padre António Carvalho da Costa, 1706-1712).
Sobre esta questão também é feita a associação do topónimo à palavra manteca, que significa ‘manta pequena’, teoria por vezes rejeitada se a relacionarmos com as capas dos pastores que sempre foram compridas.
Do ponto de vista toponímico, há ainda uma outra versão para a origem do nome da vila: a de que de substantivo comum manteigas tenha passado a nome de pessoa. Dona Urraca Nunes Manteiga aparece como antropónimo em 1258 ligado ao concelho de Guimarães, citada por José Pedro Machado e José Mattoso que encontrou este nome em mais de dez porções de terra no mesmo concelho, onde Dona Urraca Manteigas seria proprietária. Um antropónimo deste tipo pode muito bem ter passado a nome de lugar. A presença de diversos portadores deste nome poderá explicar o plural de manteigas. Os casos de nomes de pessoas que deram nome a povoações são numerosos por todo o lado e não é de estranhar que o sobrenome de grupo familiar que se tenha estabelecido neste lugar tivesse vindo a originar a expressão «o lugar dos manteigas»
Presença Criptojudaica
Muito recentemente foi possível acrescentar novos dados à história da vila de Manteigas relacionados com a presença de outras comunidades. O concelho de Manteigas é agora espaço comprovado da presença de judeus secretos (criptojudeus) e da prática de judaísmo. A identificação de marcas de simbologia religiosa associadas às comunidades judaicas e cristãs-novas visíveis no património construído e o estudo dos processos inquisitoriais de réus naturais de Manteigas condenados por práticas de judaísmo vieram a revelar-se conclusivos relativamente à presença judaica.
Das marcas convencionalmente associadas às comunidades judaicas e criptojudaicas, detetaram-se na vila de Manteigas: cruciformes, concavidades (marcas na Mezuzah) e gravações longitudinais, tendo sido também considerados os portais com chanfros.
Interessante foi também a informação conseguida com o estudo dos processos inquisitoriais. Entre os vestígios imateriais de criptojudaísmo foi possível conhecer, entre outros aspetos, as orações, as cerimónias, os jejuns, as práticas e as restrições alimentares.
“Manteigas está hoje apetrechada para dar expressão a uma realidade criptojudaica para que, quer os Manteiguenses, quer os visitantes, possam fruir essa herança e esse património específicos”.
in Manteigas Minha Pátria, Câmara Municipal de Manteigas, 2015.
Roteiro das Marcas da Herança Criptojudaica – Flyer
Tour Itinerary Traces of the Legacy of the Crypto-Jews – Flyer